sexta-feira, 17 de abril de 2015

Walt Whitman: Nenhum Animal é Insatisfeito


Nenhum Animal é Insatisfeito

Eu penso que poderia retornar e viver com animais, tão plácidos e autocontidos; eu paro e me ponho a observá-los longamente. Eles não se exaurem e gemem sobre a sua condição; eles não se deitam despertos no escuro e choram pelos seus pecados; eles não me deixam nauseado discutindo o seu dever perante Deus. Nenhum deles é insatisfeito, nenhum enlouquecido pela mania de possuir coisas; nenhum se ajoelha para o outro, nem para os que viveram há milhares de anos; nenhum deles é respeitável ou infeliz em todo o mundo.
Walt Whitman, in "Song of Myself" 

Giacomo Leopardi: Necessidade de Ocupar a Vida


Necessidade de Ocupar a Vida


"Aqueles que não têm necessidade de prover às suas próprias necessidades, e por isso deixam essa preocupação para os outros, não são geralmente capazes de prover, ou de maneira nenhuma ou então só com enorme dificuldade e de modo menos satisfatório que os outros, a uma necessidade importantíssima, que seja como for têm. Refiro-me à necessidade de ocupar a vida: a qual é muito maior do que todas as necessidades específicas, às quais, ocupando-a, se provê; e é também maior do que a necessidade de viver. Aliás, viver, em si mesmo, não é uma necessidade, porque desacompanhado da felicidade não é um bem. Pelo que, sendo-nos dada a vida, a maior e primeira necessidade é conduzi-la com a menor infelicidade possível. Ora, por um lado, a vida desocupada ou vazia é infelicíssima. Por outro lado, o modo de ocupação com o qual a vida se torna menos infeliz do que com qualquer outro é o que consiste em prover às próprias necessidades."

Giacomo Leopardi, in 'Pequenas Obras Morais'

Heliogabalo: O Imperador adolescente por Antonin Artaud




Pode-se dizer que “Heliogabalo” é obra de um poeta, mas obra de erudição, em que Antonin Artaud obrigou-se a longas pesquisas, ou seja, ele leu numerosos textos tanto antigos quanto modernos, de autores citados ao longo do texto, dentre eles: Artemidoro de Efeso, Heliodoro, Censorinus, Sextus Empiricus, Eusébio, Zózimo, Constantino Porfirogeneta, Xifilino, João Zonaras. Heliogabalo nasceu em Antioquia no ano 204, durante o reinado de Caracalla. E Caracalla, Moesa, Domna, Soémia, mãe de Heliogabalo, então viúva de Varius Antoninus Macrinus, e Maommoea, mãe de Alexandre Severo e viúva de Gessius Marcianus, curador do trigo e das águas, tudo isto dorme junto, se agita. Heliogabalo nasceu em uma época em que todos dormiam com todos e nunca se saberá por quem sua mãe foi realmente fecundada. Historicamente, a ascendência feminina remonta Heliogabalo à memória da figura do velho Basianus. Em todo o caso, o velho Bassiano teve, apoiado a uma cama com seu par de muletas, de uma mulher casual, duas filhas: Júlia Domna e Júlia Moesa, que teve por marido Sextus Varius Marcellus, mas sem dúvida fecundada por Caracalla ou por Geta (filho de Júlia Domna, sua irmã), ou por Gessius Marcianus, seu cunhado, esposo de Júlia Domna; ou talvez por Séptimo Severo: Heliogabalo – nome que parece ser a feliz contração gramatical das mais altas denominações do sol.

EL-GABAL, ELAGABALUS, HELIOGABALUS: trinta povos marcharam e sonharam em volta da riqueza destes nomes, que são figuras que correspondem às quatro grandes raças humanas (negras, amarelas, vermelhas, brancas), com ecos orgânicos às divisões do Zodíaco de Rama inspirado por Deus. Os nomes GABAL e EL-GABAL há GIBIL (em velho dialeto acádico): o fogo que destrói e deforma, mas prepara o renascimento da Phenix vermelha, saída do fogo, emblema feminino, pelo mênstruo vermelho-fogo. EL, que significa deus e se escreve com ou sem H, que, fundido com GABAL dá HELAH-GABAL, terra de Elam, cerca da Batriana – terra de Deus. Mas em GABAL há ainda BAAL ou BEL ou BEL-GI, Deus Caldeu, deus do fogo, que pronunciado, escrito ou soletrado em sentido inverso dá GIBIL (Kibil?), o fogo em velho dialeto aramaico. Ainda, GABAL significa montanha, em dialeto caldeu-aramaico e, sobretudo BEL, deus supremo, redutor, pelo qual tudo é reconduzido ao princípio, deus unitário, eliminador. O nome Heliogabalo liga o poder de todos esses nomes, nos quais só um, o sol, não intervém. Foram os gregos que introduziram Helios no nome de Heliogabalo e o confundiram com EL, deus supremo, deus dos cumes. Pois se o sol intervém em seu nome, é com referência a um lugar elevado, identificável ao cone, até todas as pontas da estrela de Salomão.

No que se refere à identificação de Heliogabalo com o seu deus, diz-se que ele ora substitui a divindade, ora se esconde atrás dela. Se um homem não é deus, e se Cristo é um deus feito homem, é como homem que morreu, e não como deus. Durante toda a sua vida Heliogabalo foi atraído por esses contrários, por esse duplo esquartejamento: de um lado, Deus, de outro, o homem. No homem – o rei humano e o rei solar; no rei humano – o homem coroado e descoroado. Se Heliogabalo é o homem e é a mulher, porque a religião do sol é a religião do homem, que nada pode sem a mulher, seu duplo em que se reflete: um e dois reunidos no primeiro andrógino, que é ele, o homem e ele, a mulher: reunidos n’ um. Ter o sentido da unidade profunda das coisas é ter o sentido da anarquia. Heliogabalo tem desde cedo o sentido da unidade que está na base de todos os mitos e de todos os nomes.

Heliogabalo absorve seu deus, comeu o deus dele como o cristão come o seu. No sol, há guerra, Marte; o sol é um deus guerreiro; e o rito do Galo é um rito de guerra: o homem e a mulher fundidos no sangue, a preço de sangue. Heliogabalo é um anarquista-nato que suporta mal a coroa. Todos os seus atos de rei são atos de anarquista-nato, inimigo público. A sua anarquia, pratica-se em primeiro lugar contra si-mesmo, e da anarquia que lança governo sobre Roma, pode se assim dizer que a prega pelo exemplo e paga por ela o devido preço. E Heliogabalo é um anarquista que começa por devorar-se a si mesmo e acaba por devorar os seus excrementos. O anarquista: nem Deus nem senhor – Eu. No seu trono, Heliogabalo é a lei. O senhor de sua lei pessoal que será a lei de todos. Impõe sua tirania, no fundo, todo tirano é um anarquista coroado que acerta o mundo pelo seu compasso. Julgando-se deus, nunca cai no erro de inventar uma lei humana. Quando chega à Roma, na manhã de um dia de março do ano 218, expulsa os homens do Senado e substitui-os por mulheres, para restabelecer o regresso natural à razão, pois é à mulher que, para ele, nasceu primeiro, assim cabe-lhe a regência da lei.

Heliogabalo casou-se três vezes, primeiro com Cornelia Paula, a segunda com a primeira vental, a terceira com uma mulher que tinha a cabeça de Cornelia Paula; depois se divorcia e retoma a vestal; depois retoma Cornelia Paula. Heliogabalo detestava guerra, cujo reinado não foi sujo por nenhuma. Mas Heliogabalo andava de mulher em mulher como andava de cocheiro em cocheiro, andava também de pedra em pedra, de vestido em vestido, de festa em festa. Convidava para a sua mesa todos os estropiados, enfermos e possuía um gosto pela doença, que chegava à maior dimensão da doença, ao contágio perpétuo com a amplitude de uma epidemia. Não somente o mundo romano, mas toda a paisagem e o mundo de Roma foram por ele modificados. A sua morte seria a coroação da sua vida. Justa para ele e para os romanos. Morte de um rebelde que morre por suas próprias ideias. Ante a irritação geral provocadas por seus excessos, Heliogabalo poderia fugir a tempo. Eis então que a guarda em armas se volta contra Heliogabalo.

A guarda o procura por todo o palácio. Júlia Soémia grita-lhe que fuja. Acompanha-o na fuga. Os perseguidores gritam por todos os lados, as suas pesadas correrias estremecem as paredes, um pânico apodera-se de Heliogabalo e de sua mãe. Aonde quer que estejam só viram a morte. Fogem pelos jardins que dão para o Tibre, pelas sombras dos pinheirais. Mas o Tibre está demasiado longe, enquanto os soldados, a um passo. Doido de medo, Heliogabalo salta para as latrinas, mergulha no excremento. É o fim!


quinta-feira, 16 de abril de 2015

Jogos Antigos #4: TIME COMMANDO


Time Commando é um jogo de ação-aventura desenvolvido pela Adeline Software e publicado pela Electronic Arts na Europa, Activision na América (Estados Unidos e Brasil), Virgin Interactive (Versão do PlayStation) e Acclaim Entertainment (Versão do Sega Saturn) no Japão.
Foi originalmente lançado para PC em 31 de Julho de 1996 na Europa, Estados Unidos e Brasil, e depois portado para PlayStation e lançado em Setembro na Europa e Estados Unidos e em 15 de Novembro de 1996 no Japão. Uma versão Sega Saturn do jogo foi lançada no Japão em 5 de Março de 1998.
Time Commando foi re-lançado para ser compatível com sístemas operacionais mais novos em 6 de Janeiro de 2012 pela G.O.G (Good Old Games)

O jogo toma início no futuro próximo, o exército dos estados unidos, com ajuda de uma corporação privada, a OTEGA, criou um tipo de simulador, capaz de simular qualquer forma de combate de qualquer ponto da história. No entanto, o programador de uma corporação rival infectou o sistema com um virus. Na introdução do game o vírus é denominado de "Predator Virus" ou em português "Vírus Predador" este vírus criou uma distorção no tempo, gerando um portal, este portal com o tempo liberava "Bactérias" que com o tempo poderiam se espalhar pelo mundo e acabar com ele definitivamente em questões de segundos. Momentos antes do portal explodir o player já conhece o protagonista do game, Stanley Opar, um integrante do S.A.V.E (Special Action for Virus Elimination) ou em português (Grupo Especial De Eliminação De Vírus) Stanley ao ver o alarme tocar, corre até o portal e acaba sendo sugado por ele, seu objetivo principal é derrotar o vírus, mas para isso, ele tem que atravessar diversas épocas da história.

Confira um Gameplay:




quarta-feira, 15 de abril de 2015

"O Espelho" de João Guimarães Rosa


“O ESPELHO”
João Guimarães Rosa

Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo

Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas — que espelho? Há-os «bons» e «maus», os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de
fenômenos sutis que estamos tratando.

Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis surpresas. Além de que a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições… E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente… E então?

Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais — côncavos, convexos, parabólicos — além da possibilidade de outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo, tetra ou quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos especializados, depois de mental adestramento, vieram a construir objetos a quatro dimensões, para isso utilizando pequenos cubos, de várias cores, como esses com que os meninos brincam. Duvida?

Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu são juízo. Fiquemos, porém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de diversões, daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a mostrengos, esticados ou globosos. Mas, se só usamos os planos — e nas curvas de um bule tem-se
sofrível espelho convexo, e numa colher brunida um côncavo razoável — deve-se a que primeiro a humanidade mirou-se nas superfícies de água quieta, lagoas, lameiros, fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal. Tirésias, contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse… Sim, são para se ter medo, os espelhos.

Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações? — jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o Monstro?

Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávicas? O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a idéia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa. A alma do espelho — anote-a — esplêndida metáfora. Outros, aliás, identificavam a alma com a sombra do corpo; e não lhe terá escapado a polarização: luz—treva. Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da casa? Se, além de os utilizarem nos manejos da magia, imitativa ou simpática, videntes serviam-se deles, como da bola de cristal, vislumbrando em seu campo esboços de futuros fatos, não será porque, através dos espelhos, parece que o tempo muda de direção e de velocidade? Alongo-me, porém. Contava-lhe…

Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação? Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda
lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses.

Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência. Mirava-me, também, em marcados momentos — de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais necessárias novas percepções.
Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me compreende.

Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa — a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.

Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado. Tomei o elemento animal, para começo.

Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu facies, é fato. Constato-o, apenas; longe de mim puxar à bimbalha temas de metempsicose ou teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou eqüinas, por exemplo, bastalhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém — a onça. Confirmei-me disso. E, então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.

Releve-me não detalhar o método ou métodos de que me vali, e que revezavam a mais buscante análise e o estrênuo vigor de abstração. Mesmo as etapas preparatórias dariam para aterrar a quem menos pronto ao árduo. Como todo homem culto, o senhor não desconhece a Ioga, e já a terá praticado, quando não seja, em suas mais elementares técnicas. E, os “exercícios espirituais” dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração, de par com a imaginação criadora… Enfim, não lhe oculto haver recorrido a meios um tanto empíricos: gradações de luzes, lâmpadas coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade. Só a uma expediência me recusei, por medíocre senão falseadora, a de empregar outras substâncias no aço e estanhagem dos espelhos. Mas, era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo.. Sem ver o que, em meu rosto, não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?

Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí, porém, decidindome a tratar simultaneamente as outras componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário — as parecenças com os pais e avós — que são também, nos nossos rostos, um lastro evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto. E, em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem; e os efêmeros interesses, sem seqüência nem antecedência, sem conexões nem fundura. Careceríamos de dias, para explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afirmações por seu valor nominal.

À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja. E escurecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com a saúde, comecei a sofrer
dores de cabeça. Será que me acovardei, sem menos? Perdoe-me, o senhor, o constrangimento, ao ter de mudar de tom para confidência tão humana, em nota de fraqueza inesperada e indigna. Lembre-se, porém, de Terêncio. Sim, os antigos; acudiu-me que representavam justamente com um espelho, rodeado de uma serpente, a Prudência, como divindade alegórica. De golpe, abandonei a investigação. Deixei, mesmo, por meses, de me olhar em qualquer espelho.

Mas, com o comum correr quotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranqüilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia… Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era — o transparente contemplador?… Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.

Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exercitara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!

Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um… desalmado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho — com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças — o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória.

Mas, o senhor estará achando que desvario e desoriento-me, confundindo o físico, o hiperfísico e o transfísico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou alinhamento lógico — na conta agora caio. Estará pensando que, do que eu disse, nada se acerta, nada prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade, não seria mais que reles obsessão auto-sugestiva, e o despropósito de pretender que psiquismo ou alma se retratassem em espelho…

Dou-lhe razão. Há, porém, que sou um mau contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos, e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois. Releve-me. E deixe que o final de meu capítulo traga luzes ao até agora aventado, canhestra e antecipadamente.

São sucessos muito de ordem íntima, de caráter assaz esquisito. Narro-os, sob palavra, sob segredo. Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.

Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação,
radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.

 São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E… Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal… E era não mais que: rostinho de menino, de menosque-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano — intersecção de planos — onde se completam de fazer as almas?

Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte — exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale”… — digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas… E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: — “Você chegou a existir?”

Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?

ROSA, Guimarães.
Primeiras Estórias.

Maioridade Penal: Uma questão complexa



Está em discussão no congresso sobre a maioridade penal de 18 para 16 anos, esse é um tema polemico e complexo de se discutir e envolve questões passionais, culturais e religiosos. Vendo nas redes sociais de páginas que são contrárias a maioridade penal são massacradas por pessoas que já sofreram algum tipo de transgressão por menores.

Ferreira Gullar também entrou no tema discordando de um ministro do Supremo Tribunal Federal onde falou que a "cadeia não conserta ninguém" e a resposta de Gullar é de uma límpida clareza sobre as razões que tal ministro discorda: "Minha surpresa decorre do fato de que melhorar, educar os jovens não é a função da cadeia e, sim, da escola. Se a cadeia conseguir educar, tanto melhor, mas sua finalidade precípua não é essa e, sim, a de afastar o criminoso do convívio social para preservar a segurança e a tranquilidade dos demais cidadãos."

A questão também central é os jovens que cometem os crimes sabem que estão cometendo? Esse é uma resposta até fácil de responder, já que as informações são bem disseminadas rapidamente, outra questão de que a cadeia não resolveria tais casos e sairiam das cadeias piores que entram também deve-se colocar em "check".

Uma maior discussão com argumentação fundada e precisa, deve ser feito com a população não apenas no congresso, restrito a pessoas que deveriam representar o povo, mais outro ponto a se questionar e a forma de punição, que é restrita a cadeia, e por que não pensar em uma prisão de trabalho como colonias agrícolas onde se manteriam ocupados o dia inteiro e não apenas trancados em quartos, pois a reincidência desses criminosos é grande (ou seja a volta para o crime).

Essas questões devem ser argumentativa e uma participação popular, que não seja apenas fundado em pensamentos individuais sobre esse assunto complexo.

sábado, 11 de abril de 2015

O que estou escutando: INTERPOL - ANTICS



Antics é o segundo álbum de estúdio lançado pela banda Interpol em 27 de setembro de 2004.

Recebeu boas críticas por parte da crítica, e é considerado por muitos fãs de Interpol como "o fiel seguidor de Turn on the Bright Lights".

Foi considerado pela revista Rolling Stone como 18º melhor álbum de 2004, e foi considerado pela Pitchfork como o 27º melhor álbum de 2004.

Faixas

"Next Exit" – 3:20
"Evil" – 3:35
"NARC" – 4:07
"Take You on a Cruise" – 4:54
"Slow Hands" – 3:04
"Not Even Jail" – 5:46
"Public Pervert" – 4:40
"C'mere" – 3:11
"Length of Love" – 4:06
"A Time to Be So Small" – 4:50

Obrigatória do Álbum: EVIL