Fruto da vitória dos escravos de Santo Domingo contra o exército napoleônico, então o mais poderoso do mundo, a proclamação da independência do Haiti, em 1º de janeiro de 1804, é um desses episódios da história universal cujo alcance foi por muito tempo ocultado. Em sua obra "Silencing the Past" (Silenciando o Passado), o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot mostra que essa revolução de escravos exigindo direitos universais e instaurando a primeira república negra do mundo era
simplesmente impensável, e portanto foi reduzida ao silêncio.
As conseqüências do desmoronamento econômico da "Pérola das Antilhas" sobre o desenvolvimento da Revolução Francesa e os regimes que a seguiram não foram totalmente exploradas. Em meados do século 18, a colônia francesa de Santo Domingo fornecia 75% da produção mundial de açúcar, um bem cuja importância pode ser comparada à do petróleo hoje e representava três quartos do comércio dos
portos franceses.
A amplidão dos massacres e das devastações durante os 13 anos de guerra civil da revolução haitiana só foi percebida tardiamente na metrópole. Morreram entre 100 mil e 150 mil negros e cerca de 70 mil franceses, dos quais 20 mil colonos, muitas vezes em circunstâncias atrozes. As notícias, os comissários e os reforços levavam na época dois meses para atravessar o Atlântico. Desde a insurreição dos escravos no norte, deflagrada em 14 de agosto de 1791 durante a famosa cerimônia vodu de Bois-Caiman, as ordens e os decretos parisienses sempre se atrasaram em relação aos
acontecimentos.
Vários historiadores afirmam que, se Napoleão não tivesse sido derrotado pelos escravos de Santo Domingo, não teria realizado a mais considerável e pior operação imobiliária de todos os tempos. Ao vender a Luisiana, território equivalente a 17 Estados americanos atuais, aos jovens Estados Unidos por um pedaço de pão, ele mais que duplicou o território deste país, cujo potencial na época era considerado bem menor que o da antiga colônia de Santo Domingo.
De seu exílio em Santa Helena, o imperador deposto reconheceu que a expedição de Santo Domingo foi "um dos maiores erros" que cometeu. "Eu deveria me contentar em governar por intermédio de Toussaint", ele confiou ao conde de Las Cases. Pressionado pelos colonos e por sua esposa créole Joséphine de Beauharnais, Napoleão Bonaparte sentiu-se desafiado por Toussaint Louverture, um estrategista formidável, alternativamente qualificado de Spartacus ou Vercingétorix negro, que
impôs sua autoridade a toda a ilha de Hispaniola e teve a audácia de promulgar uma Constituição sem consultar o Primeiro Cônsul.
Livre da ameaça inglesa pela Paz de Amiens e seguindo os conselhos do general bretão Kerverseau, Bonaparte reuniu uma força considerável, "tal que não haja necessidade de utilizá-la toda, e que seu aparato demonstre a inutilidade da resistência": 43 mil homens, entre eles vários veteranos da campanha do Egito, poloneses e espanhóis, sob as ordens de seu cunhado, Victor-Emmanuel Leclerc.
Longe de se deixar impressionar pela imponente armada, o general Christophe, um dos lugares-tenentes de Louverture e que se tornaria o segundo chefe de Estado do Haiti e seu primeiro rei, leva a cabo sua ameaça de incendiar o Cap-Français, reduzindo a "Paris das Ilhas" a um monte de cinzas.
Apesar da traição que permitiu capturar Toussaint Louverture, que foi preso em uma cadeia glacial no forte de Joux, no Jura (França), onde morreu em 7 de abril de 1803, o corpo expedicionário encontrou uma resistência feroz dos negros, que temiam com razão o restabelecimento da escravatura.
"Ao me derrubar, abateram em Santo Domingo apenas o tronco da árvore daliberdade dos negros. Ele voltará a brotar pelas raízes, que são potentes e numerosas", profetizou aquele que Augusto Comte situou entre os novos "santos do calendário positivista", ao lado de Washington, Buda, Platão e Carlos Magno.
À guerrilha dos antigos escravos e à estratégia da terra queimada somou-se à devastação da febre amarela, que matou 30 mil soldados franceses. Levado pela "doença terrível", Leclerc foi substituído pelo cruel Donatien Rochambeau, que mandou vir de Cuba cães especialmente treinados para atacar negros. Dessalines, que substituiu Toussaint Louverture, não foi menos brutal, e os últimos meses da guerra foram marcados por combates de uma ferocidade raramente igualada. Em 18 de novembro de 1803, a batalha de Vertières, onde se destacou o intrépido Capois la Mort contra as tropas de Rochambeau, é o fim da expedição francesa, cujos restos se rendem a Dessalines no Cap. Jovem secretário de Dessalines, Boisrond-Tonnerre foi encarregado de redigir a ata de independência. Em 1º de janeiro de 1804, reunidos na praça de armas de Gonaives, na presença de uma imensa multidão, os chefes do exército indígena vitorioso proclamam a independência de Santo Domingo, que retoma seu nome indígena de Haiti: "Em nome dos negros e dos homens de cor, a independência de Santo Domingo está proclamada. Devolvidos à nossa dignidade primitiva, garantimos nossos direitos.
Juramos jamais ceder a nenhuma potência da Terra", eles prometem. Nomeado governador-geral vitalício, antigo título de Toussaint Louverture, Dessalines torna-se o primeiro chefe de Estado do Haiti, do qual se fará proclamar imperador nove meses depois.
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