Hoje considera-se mais adequado a utilização da palavra Conjuração para a denominação do movimento.
Confira o texto de Kenneth Maxwell historiador britânico. É especialista em História Ibérica e no estudo das relações entre Brasil e Portugal no século XVIII, sendo um dos mais importantes brasilianistas da atualidade.
Tendo publicado "Conflicts and Conspiracies: Brazil & Portugal 1750-1808" (Cambridge University Press, 1973), notabilizou-se no Brasil a partir da publicação da obra no país, em 1977, sob o título "A devassa da devassa - A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808" (ISBN 8521903979). Publicou, posteriormente, "Marquês de Pombal - Paradoxo do Iluminismo" (1996) e "A Construção da Democracia em Portugal" (1999). A sua obra mais recente é "Naked Tropics: Essays on Empire and Other Rogues" (2003).
Em maio de 2004 renunciou ao seu cargo de Diretor de Estudos Latino-Americanos do Conselho de Relações Exteriores de Nova York por ter criticado Henry Kissinger em uma resenha de livro sobre o golpe de Estado de Augusto Pinochet em 1973 e de não ter tido uma resposta publicada na revista Foreign Affairs.
Atualmente, é diretor do Programa de Estudos Brasileiros do Centro David Rockefeller para Estudos Latinoamericanos da Universidade de Harvard.
Confira o artigo que fala sobre o termo Conjuração mineira:
Conjuração mineira: novos aspectos*
Kenneth Maxwell
Há duzentos anos, aos 10 de maio de 1789, no fim da tarde, um destacamento de soldados do regimento europeu de Estramoz cercou a casa no Rio de Janeiro onde se ocultava o alferes Joaquim José da Silva Xavier. Com um mosquete carregado nas mãos, Tiradentes foi preso.
Vou falar hoje, neste bicentenário, da conjuração mineira, menos sobre as conseqüências desta prisão do que sobre as causas da chamadaInconfidência Mineira, designação de que francamente não gosto, e que não uso; a palavra inconfidência vem dos donos do poder e não da oposição. Vem da contra-revolução e não da revolução; e, enfim, o objeto das nossas comemorações é uma revolução frustrada, não uma repressão bem-sucedida. É bom que estejamos bem claros sobre isto.
Vou fazer a minha apresentação hoje em três seções. A primeira vai tratar da conjuntura imperial, ou seja, o contexto luso-brasileiro e colonial da conjuração.
A segunda seção tratará do contexto regional, ou seja, a situação mineira.
E finalmente vou falar um pouco sobre a conjuração, a sua composição, as idéias e os motivos dos conspiradores.
Vamos atravessar, então, muito esquematicamente, da macro para a micro-história; dos condicionamentos sócio-econômicos para as motivações particulares; das estruturas e conjunturas para as mentalidades e episódios.
Conjuntura Imperial
Primeiro, os aspectos econômicos da conjuntura imperial, ou seja, as conseqüências do fim da idade do ouro para o sistema luso-brasileiro e o seu impacto sobre a política colonial de Portugal no Brasil.
A crise do ouro teve início quase imperceptivelmente nos primeiros anos da década de 1760 e adquiriu impulso até alcançar repercussões de proporções catastróficas. A produção das minas brasileiras tinha começado a declinar (CARDOZO, 1946, p. 137). A exaustão do ouro aluvial, numa economia tão dependente do ouro brasileiro em setores específicos, tinha de produzir conseqüências de amplo alcance.
A renda real do ouro mineiro caiu bruscamente. A quota de 100 arrobas fora satisfeita e excedida na década de 1750. No decênio seguinte, o quinto rendeu a média de apenas 86 arrobas de ouro, e entre 1774-85 caiu novamente a média, agora para 68 arrobas1. O impacto sobre a cunhagem de moedas foi imediato. As emissões monetárias caíram mais de 50% nos anos desta década de 1770 (MACEDO, 1951, p. 167).
O colapso do setor do ouro teve dramático impacto sobre o grupo de interesses cujo canal de intercâmbio dependia do ouro: a vulnerável interconexão que ligava indiretamente os ingleses ao ouro de Minas Gerais. Realmente, a redução do comércio britânico com Portugal atingiu o limite do catastrófico com o valor das exportações de produtos ingleses caindo para a metade entre 1760-70 (SCHUMPETER, p. 17).
O término da idade do ouro tanto teve aspectos positivos quanto negativos, pois a recessão produziu uma alteração no ambiente em Portugal, que abriu importantes possibilidades ao governo do País. Posta diante da decadência geral das reexportações coloniais e do conseqüente declínio da capacidade de importar, mas com a demanda interna sustentada pela exportação de alguns produtos metropolitanos e coloniais, a substituição de importações era uma solução pragmática natural. A recessão antecipou e acompanhou o celebrado desenvolvimento industrial de Pombal. A cronologia é clara. Dos estabelecimentos manufatureiros criados no regime de Pombal, 80% foram autorizados após 1770 (MACEDO, 1951, p. 255).
Embora a queda da produção brasileira de ouro tivesse eliminado os meios de pagamento de manufaturas estrangeiras, o fumo brasileiro a fonte principal de capital da oligarquia mercantil portuguesa não fora afetado pela recessão. Além disto, estes mesmos interesses tinham, graças a suas conexões com as companhias do Brasil, uma nova matéria-prima ideal para a substituição das importações: o algodão. Já que a necessidade tributária forçava o Estado a investir em fábricas, a conjunção do capital privado com o estatal era uma conseqüência natural, principalmente porque aliança semelhante já fora realizada, pelo mesmo grupo, visando objetivos nacionais, nas companhias brasileiras, nos anos anteriores à crise (MAXWELL, 1985, p. 60-76).
Em conseqüência, figuras importantes da oligarquia mercantil portuguesa assumiram as funções de uma burguesia nacional industrial-capitalista, constituindo um grupo com interesses enraizados na metrópole e no complexo comercial luso-brasileiro.
A produção crescente de manufaturas de algodão que o avanço tecnológico iniciava na Inglaterra provocaria um súbito aumento da demanda de matéria-prima. Esta procura de algodão brasileiro favoreceria cada vez mais a reciprocidade, mas, ao mesmo tempo, colocaria o império luso-brasileiro definidamente na órbita de um novo grupo de interesses na Inglaterra os fabricantes de tecidos de algodão de Lancashire que eram, de todos os grupos ingleses, os de mentalidade mais agressiva e expansionista2.
A nova situação, claramente, tinha presságios de mudança política fundamental. Os franceses acreditavam, lá pelos anos de 1770, que, se ocorresse um novo ataque dos Bourbons a Portugal, a Inglaterra contentar-se-ia, provavelmente, em garantir que o Brasil assegurasse uma virtual independência e mantivesse com ela uma conexão econômica direta (CHRISTELOW, p.24). Na essência, o argumento francês era perspicaz e a nova situação era tal, que só podia ser confirmada e agravada pelas mudanças mais profundas que estavam forçando a economia britânica, em rápida expansão, a buscar novos mercados, e os comerciantes ingleses a procurarem créditos a prazos mais curtos e intercâmbio com menores restrições.
Para Portugal, a reciprocidade com a Inglaterra e a diversificação e o crescimento de contatos comerciais com a Europa davam lugar a pressões diametralmente opostas. A oligarquia mercantil industrial portuguesa, como mercadores de fumo, sempre tinha estado inclinada para o continente e contra o comércio anglo-português; como novos industriais, opunham-se à abertura do mercado português e brasileiro aos produtos de algodão da Inglaterra; e, como empresários do ramo do algodão, estavam interessados no lucrativo comércio de reexportação: eram os que teriam sua oposição decididamente fortalecida a qualquer mudança do caráter exclusivo do sistema colonial. Os interesses desta elite mercantil-industrial metropolitana iam se tornando crescentemente incompatíveis com a política colonial notoriamente flexível do regime pombalino.
Para Martinho de Melo e Castro, um dos ministros portugueses mais chegados aos interesses industriais da metrópole e, após a queda do marquês de Pombal em 1777, responsável pela política colonial portuguesa, o remédio era óbvio: proteger os interesses da poderosa oligarquia comercial-industrial metropolitana significava o abandono do flexível sistema pombalino e a implantação, em seu lugar, de um neomercantilismo mais rígido e efetivo (MAXWELL, 1989). O afastamento da visão imperial ampla de Pombal, em 1777, colocou a política colonial firmemente na esfera dos interesses e dos preconceitos da metrópole.
Já em janeiro de 1785, Melo e Castro mandou instruções a todos os governadores da América Portuguesa, proibindo fábricas e manufaturas. Nas suas instruções aos governadores, dizia então Melo e Castro (1785, p.217-8): "[que com estes] todas as utilidades e riquezas d'estas importantíssimas colônias ficarão sendo patrimônio dos seus habitantes e das nações estrangeiras, com quem elles as repartem, e que Portugal não conservara mais que o apparente, estéril e inútil domínio n'ellas"3.
Melo e Castro delineara com notável precisão a situação enfrentada pela metrópole em meados do decênio de 1780. As pressões divergentes advindas do crescimento das indústrias de substituição de importações, tanto na metrópole como no Brasil, desafiavam as idéias básicas que amparavam todo o sistema colonial. Na década de 1780, o governo português estava diante de duas opções: ou estas máximas eram abandonadas ou passavam a ser observadas mais estritamente. As medidas de Melo e Castro e as suas atitudes seguiam, claramente, a clássica tradição mercantilista.
O segundo aspecto importante da conjuntura tem a ver com as mudanças ideológicas ou de percepções, particularmente na colônia. Certamente, havia algo de sólido no raciocínio em que se baseava a política colonial de Pombal. A heróica tradição brasileira de antagonismo às invasões estrangeiras nunca foi esquecida por ele. A luta de Pernambuco e da Bahia contra os holandeses, no século XVII, e as ações contra os franceses no Rio de Janeiro, no século XVIII, eram citadas seguidamente em sua correspondência diplomática, oficial e privada. Precisamente, tais exemplos eram usados para justificar a ampla base local das instituições militares e administrativas da colônia sob o controle dos magnatas locais. A histórica participação e mobilização dos brasileiros em sua defesa própria também era gratuitamente apontada por Pombal aos ingleses, cujo governo enfrentava a revolta dos seus colonos na América do Norte. Pombal observou, em novembro de 1775, que as táticas dos anglo-americanos eram idênticas às dos pernambucanos: "os habitantes da America inglesa estão actualmente copiando e seguindo o mesmo idêntico plano com que os bons vassallos portuguezes de Pernambuco e da Bahia de Todos os Santos se propozeram lançar, como lançaram, fora d'aquellas duas úteis capitanias os usurpadores hollandezes" (ALDEN, 1961, p.369-82).
Por uma formidável combinação de circunstâncias, o conflito aberto no interior do esquema imperial luso-brasileiro coincidiria com o desmoronamento do sistema mercantilista da potência colonial européia mais poderosa. Entretanto, o fermento da inovação dentro do Brasil já estava levantando questões mais amplas, que só podiam indicar a pertinência do exemplo das treze colônias rebeladas ao norte da América. As medidas repressivas portuguesas não podiam deixar de evocar no Brasil a alternativa lógica que a fundação dos Estados Unidos exemplificava de maneira brilhante e tentadora.
Em outubro de 1786, Thomas Jefferson, embaixador dos Estados Unidos na França, recebeu uma carta vinda da velha Universidade de Montpellier, assinada com o pseudônimo de Vendek. O missivista dizia ter assunto muito importante a tratar, porém queria que Jefferson recomendasse um canal seguro para a correspondência. Jefferson fê-lo imediatamente. Em maio do ano seguinte, 1787, a pretexto de visitar as antigüidades de Nîmes, Jefferson acertou um encontro com Vendek. Jefferson comunicou a sua conversa com Vendek à comissão para a correspondência secreta do congresso continental americano: "Eles consideram a Revolução Norte-Americana como um precedente para a sua", escreveu o embaixador; "pensam que os Estados Unidos é que poderiam dar-lhes um apoio honesto e, por vários motivos, simpatizam conosco (...) no caso de uma revolução vitoriosa no Brasil, um governo republicano seria instalado" (JEFFERSON, 1953, p.13-9).
Vendek, José Joaquim Maia e Barbalho, natural do Rio de Janeiro, era estudante da Universidade de Coimbra. Jefferson respondeu a Maia que não tinha autoridade para assumir um compromisso oficial. Porém, uma revolução vitoriosa no Brasil, obviamente, disse ele, "não seria desinteressante para os Estados Unidos, e a perspectiva de lucros poderia, talvez, atrair um certo número de pessoas para a sua causa, e motivos mais elevados atrairiam outras" (Idem, p.17).
Um relatório minucioso dos comentários de Jefferson chegou ao Brasil, levado por Domingos Vidal Barbosa, estudante em Montpellier4. Vidal Barbosa era fazendeiro em Juiz de Fora. Era um divulgador entusiasmado do que escrevia o abade Raynal "a ponto de ter o hábito de recitar trechos de memória5. Realmente, Raynal influenciou muito o pensamento dos brasileiros de bom nível educacional na década de 1780. Sua Histoire Philosophique et Politique era, já, presença obrigatória nas bibliotecas da colônia e um manual muito citado por aqueles que se inspiravam no exemplo norte-americano6. Além do mais, a ampla descrição do Brasil feita por Raynal, seu depreciativo retrato de Portugal, e o parecer de que os portos do Brasil deviam ser abertos ao comércio de todas as nações, contradiziam frontalmente a nova tendência política de neomercantilismo de Lisboa.
Na década de 1780, podemos dizer que a tensão interna do sistema luso-brasileiro provocava crescente divergência entre a colônia e a metrópole. Enquanto a política imperial fosse tolerante, o envolvimento de poderosos grupos de interesses metropolitanos e coloniais em funções governamentais não prenunciaria, inevitável ou necessariamente, a ameaça de uma confrontação entre eles. Porém, após a queda de Pombal, dada a motivação econômica contraditória, a situação mudou dramaticamente. A rigidez cada vez maior da política colonial, elaborada em termos de um estrito neomercantilismo e coincidente com o aumento do entusiasmo dos brasileiros pelo exemplo da vitoriosa rebelião colonial norte-americana, reduziu, em muito, a possibilidade de ser evitada uma crise nas relações intra-imperiais.
Situação Mineira
Mas deixando agora estes aspectos da macroconjuntura, pretendo então enfocar o plano regional, ou seja, a situação mineira; entraremos assim na segunda parte da minha apresentação.
A população da capitania de Minas Gerais em 1776, excluídos os índios, era superior a 300 mil habitantes, o que representava 20% da população total da América Portuguesa, e constituía a maior aglomeração da colônia. Mais de 50% da população era negra, integrada por africanos importados ou por escravos brasileiros de pura herança africana. O restante da população era constituído, grosso modo, por percentagem igual de brancos e pardos. Este último grupo compreendia, na gíria colonial, mesclas raciais puramente brasileiras por nascimento7.
Dentro dos limites da capitania, a população era desigualmente distribuída. Havia considerável movimento migratório interno, sobretudo para o sul. Rio das Mortes, por exemplo, nas últimas décadas do século XVIII, quase triplicou a sua população. No entanto, Vila Rica, durante este mesmo período, apresentou um declínio demográfico8.
A mudança de população para o sul indicava profunda alteração das funções e da economia de Minas Gerais, após a década de 1760. O declínio de Vila Rica e a ascensão do sul refletiam á queda do papel dominante da mineração e a crescente importância das atividades agrícolas e pastoris. Em verdade, o próprio processo de mudança, especialmente no decênio de 1780, tinha gerado notável diversificação da economia regional.
Minas Gerais rural dos anos pioneiros apresentava feições que contrastavam gritantemente com a economia latifundiária do litoral. O surto do ouro criara um mercado interior para produtos até então apenas exportados. Logo os próprios mineiros começaram a produzir localmente certos gêneros básicos, essenciais ao abastecimento dos campos de mineração e das cidades em crescimento.
Com a implantação de engenhos de açúcar em Minas Gerais e a considerável demanda urbana, passou a haver um tipo especial de propriedade territorial, diferente dos grandes latifúndios monocultores do litoral. A Fazenda de Minas, muitas vezes, combinava o engenho de açúcar com a mina, ou esta última com a pecuária. Muitos latifúndios de Minas tinham lavra aurífera, grande lavoura e engenhos de açúcar e de farinha. (COSTA FILHO, 1963, p.15, 162-65, 352)9.
O ponto importante é que a economia regional, com suas propriedades rurais horizontalmente integradas, era particularmente capaz de absorver o choque das transformações que vieram após a exaustão do ouro aluvial. Tanto tinha capacidade para corresponder ao estímulo recebido da economia interna quanto do amplo comércio exterior que minguou na proporção direta do declínio da produção aurífera. Depois do decênio de 1760, qualquer produto local suportava uma comparação favorável com os artigos importados10.
Mas as despesas crescentes em artigos de importação tinham contribuído para aumentar as dificuldades dos mineiros. Demandas mais complexas exigiam maiores gastos de capital, maior emprego de instrumentos de ferro e aço, assim como uma exploração mais racional e mais cientifica. O preço elevado do ferro e da pólvora, importados da Europa, gerou para os mineradores uma necessidade imperiosa de custos de produção mais baixos e forçou os empresários a buscarem substituir as importações por podutos locais: no que dizia respeito ao ferro, ele estava ali, bem perto, ao alcance da mão11.
A sociedade mineira, no século XVIII, também jamais foi constituída apenas por senhores e por escravos, pelo menos no sentido em que tais termos podem ser aplicados às grandes propriedades agrícolas das zonas litorâneas. Em Minas, o povoamento urbano através de cidades plantadas nas montanhas produziu um ambiente diferente e, embora os cidadãos brancos mais ricos mantivessem amplos interesses na mineração e na agricultura das zonas circunvizinhas, a casa da cidade é que era o foco de suas atividades e de sua cultura. Porém, em Minas o foco urbano e o desenvolvimento difuso em atividades econômicas múltiplas fizeram com que os valores plutocráticos dos magnatas da capitania fossem algo diferente, qualitativamente, do espírito patriarcal do resto da colônia. Os magnatas de Minas, de que eram típicos o opulento contratante João Rodrigues de Macedo e o latifundiário Alvarenga Peixoto, ou o advogado de Vila Rica, Cláudio Manuel da Costa, participavam de uma miríade de atividades econômicas e estavam crescentemente vinculados à economia regional de um modo que jamais poderiam estar os grandes produtores de matérias-primas coloniais das demais zonas da América Portuguesa.
Além do mais, a transformação dos órgãos governamentais regionais, fiscais e administrativos, em centros concentrados de interesse local fortalecera tal tendência. A Junta da Fazenda de Minas, como uma instituição de grande importância, não era desafiada por qualquer autoridade de nível idêntico. Vila Rica não tinha relação ou alfândega independente, como as existentes nas capitanias litorâneas, com jurisdições definidas12. A Junta da Fazenda de Minas, desde o decênio de 1760, vinha sendo a única responsável pela arrematação dos contratos de maior importância, e nenhum contrato local era arrematado por empresários metropolitanos, embora nas capitanias do litoral houvesse ainda contratos arrematados em Lisboa13. Tais fatores faziam da Junta da Fazenda de Minas um órgão no qual eram centralizados os mais poderosos interesses econômicos locais. O resultado era que as preocupações vitais de um homem de negócios português, imigrante, como João Rodrigues de Macedo, ficavam profundamente enraizadas e inseparáveis do ambiente local, de um modo inimaginável por um agente de cidade portuária ou um empresário importador-exportador da Bahia ou do Rio de Janeiro.
Entre os brancos mineiros, também emergira uma elite letrada cada vez mais representativa do caráter próprio de sua sociedade. Durante quarenta anos, os mineiros vinham mandando os seus filhos para a Universidade de Coimbra: em 1786, havia 12 mineiros entre os 27 brasileiros matriculados nesta universidade, em 1787 eram de Minas 10 dos 19 estudantes do Brasil lá matriculados14. O decano da mais antiga geração de brasileiros diplomados era o conhecido advogado Cláudio Manuel da Costa. Fora para Coimbra em 1749 e logo conquistou em Portugal boa reputação como poeta. Regressando ao Brasil, estabeleceu imediatamente a sua banca de advocacia. Em 1759, foi eleito para a Academia Brasílica dos Renascidos, da Bahia, entidade literária de existência curta e uma das poucas iniciativas culturais que se tentou na América Portuguesa, global e localmente. O bem-sucedido jovem brasileiro despeitou a atenção do governador Freire de Andrade, que o nomeou secretário do governo de Minas, função que desempenhou por duas vezes. Cláudio Manuel da Costa era, realmente, homem muito rico tinha clientela importante, muitos escravos e sociedade em minas de ouro, possuindo uma fazenda de criação de gado e de porcos, além de um negócio de grandes proporções de concessão de créditos. Sua espaçosa mansão em Vila Rica era o ponto de reunião da intelectualidade da capitania15.
Entre os visitantes mais regulares do poeta, nos anos do decênio de 1780, contava-se Tomás Antonio Gonzaga, também poeta e o ouvidor de Vila Rica. Tomás Antônio Gonzaga, nascido no Porto, cresceu no Brasil onde freqüentou o Colégio dos Jesuítas da Bahia. Os dois eram o centro de um grupo que contava com o intendente de Vila Rica, Francisco Bandeira, o contratante João Rodrigues de Macedo, o ex-ouvidor de São João d'El Rei, Alvarenga Peixoto, e dois padres Carlos Correia, vigário da rica paróquia de São José do Rio das Mortes, e o cônego Luis Vieira da Silva, da catedral de Mariana16.
Luis Vieira da Silva, um padre erudito e que tinha uma excelente e moderna biblioteca composta de mais de 600 volumes, era um entusiasta dos acontecimentos da América do Norte. Luis Vieira sustentava que as potências européias não tinham direitos de domínio sobre a América. Luis Vieira, um homem que nunca deixara o Brasil, pensava de modo muito semelhante ao daqueles estudantes conspiradores, como Maia e Vidal Barbosa, que tinham apertado as mãos em Coimbra e jurado libertar a sua pátria do domínio português17.
O grupo de Vila Rica não era o único círculo de homens inteligentes e de pensamentos afins que se encontravam regular e informalmente para discutir poesia, filosofia e os acontecimentos da Europa e das Américas. Grupos semelhantes de advogados e escritores reuniam-se em São João d'El Rei e por toda a parte da capitania para conversar ou jogar cartas18. Os membros do círculo de Vila Rica, pela qualidade de sua poesia e por sua posição, influência e riqueza, situavam-se na cúpula da sociedade de Minas, tendo laços familiares, de amizade ou de interesses econômicos a vinculá-los com uma rede de homens do mesmo nível, embora menos organizados em toda a capitania. Em sua qualidade de advogados, juízes, fazendeiros, comerciantes, emprestadores de dinheiro e membros de poderosas irmandades leigas, eles tipificavam os interesses diversificados, mas intensamente brasileiros da plutocracia mineira.
As poderosas forças econômicas que pressionavam empresários a se tornarem auto-suficientes, juntamente com o ambiente cultural urbano e o êxito evidente da cultura transplantada em definir suas próprias soluções distintivas nos campos artístico, arquitetônico e musical, foram, em conjunto, os fatores que impeliram, em 1781, Alvarenga Peixoto a manifestar esta forte autopercepção no Canto Genetliaco, apologia entusiástica das riquezas, dos homens e das promessas da terra brasileira19.
As condições sociais e econômicas de Minas Gerais, na década de 1780, contradiziam tudo o que o conceito de dependência colonial, então corrente entre os estadistas lisboetas, tinha por axiomático. Assim, o desenvolvimento verificado em Minas era a antítese daquilo que a mentalidade oficial de Lisboa acreditava constituir a função de uma capitania colonial, e especialmente a daquela que, por tanto tempo, fora a fonte mais vital da riqueza colonial portuguesa.
A tensão crescente no interior do sistema não era, portanto, unicamente econômica e social na origem. O Estado pombalino, em suas criações administrativas, em ambos os lados do Atlântico, envolvera magnatas locais e negociantes em órgãos do governo, com uma deliberação que raiava o desvario. Comerciantes e homens de negócios tinham sido atraídos pelas seções administrativas da Fazenda Real, feitos delegados da Junta do Comércio de Lisboa, nomeados para as intendências coloniais do ouro, transformados em funcionários fiscalizadores da administração dos diamantes, e membros das Juntas das Fazendas das Capitanias20.
E, ainda, a participação de homens de negócios e latifundiários na administração pública só funcionava em favor dos interesses do Estado quando havia coincidência dos interesses imperiais com os locais, e na medida em que a vigilância constante do governo central em Lisboa ou Rio de Janeiro pressionasse no sentido das prioridades gerais sobre os interesses pessoais e facciosos da oligarquia local. A participação dos grupos locais no próprio mecanismo governamental não dava como resultado obrigatório o fortalecimento dos vínculos naturais entre metrópole e colônia, os quais eram, na opinião de Pombal, o corolário implícito do procedimento. Na verdade, sendo divergentes as motivações econômicas, dava-se exatamente o oposto.
Já nos anos da década de 1770, houve uma significativa lassidão no rigor da vigilância da Fazenda Real sobre as Juntas das Fazendas Coloniais. Este estado de coisas teve resultados particularmente danosos em Minas, onde a Junta Regional era parcialmente responsável pela arrecadação do quinto real, anteriormente a mais importante das receitas da coroa. Pelo fim do decênio em 1770 tinham sido postas de lado, virtualmente, as estipulações da lei, em virtude do contínuo fracasso do intento de completar as 100 arrobas da quota de ouro devido a Portugal cada ano.
A Junta da Fazenda de Minas não era mais operante em suas outras atribuições: a contratação das receitas da capitania, os dízimos e as entradas. Os pagamentos atrasavam-se por anos. João Rodrigues de Macedo, em 1788, deixava um débito com a Junta da Fazenda de Minas no valor de 763.168$019 de réis: esta era uma soma correspondente ao triplo da receita oficial da capitania por ano. E Rodrigues de Macedo não era uma exceção. Por volta de 1788, somente quanto às entradas, o montante atrasado já alcançava a impressionante cifra de 1.554.552$539 de réis21. Como se pode verificar, as dívidas não são coisa da nova história do Brasil. Uma causa destas enormes dívidas, particularmente no caso das entradas, foi a recessão provocada pelo declínio da produção aurífera. Os contratos foram negociados com a esperança de enormes lucros dentro de uma situação de expansão econômica e, em tais circunstâncias, os longos prazos contratados com preço fixado teriam sido a vantagem dos contratadores; mas com a economia em contração, as somas prometidas à Fazenda Real pelos contratadores foram se tornando cada ano mais difíceis de se realizarem.
Dentro desta situação complicada constam dois fatores precipitantes: o primeiro foi o governo de Cunha Meneses, homem agressivo e pretensioso, que entrou em amargas controvérsias com a elite mineira; o segundo, e acima de tudo, foi a chegada do Governador e Visconde de Barbacena em 1788 com instruções detalhadas de Martinho de Melo e Castro para implementar uma raiz e um ramo da reforma de todo o sistema tributário de Minas. Em julho de 1788, Barbacena convocou a Junta da Fazenda Mineira, transmitiu a reprimenda de Lisboa, insistiu na imposição da derrama e anulou todos os contratos. As palavras do novo governador caíram como uma bomba. O atraso com a Fazenda Real na quota de 100 arrobas anuais chegava ao montante de 538 arrobas de ouro, ou seja, três bilhões e meio de réis. As dívidas nos contratos de dízimos e entradas representavam dois bilhões e meio de réis22.
Na estrutura imperial, então, esboçava-se, na minha opinião, um conflito de proporções clássicas: a política de Melo e Castro para as colônias (derivada das circunstâncias da fase pós-pombalina e, em sentido amplo, a serviço dos interesses da poderosa oligarquia mercantil-industrial metropolitana) tinha chegado, em 1788, a uma situação de confronto direto com a plutocracia colonial que, antes da queda de Pombal, direta ou indiretamente, exercera o governo de Minas Gerais. Em .verdade, não havia parcela da elite no poder em Minas que não fosse afetada, de um modo ou de outro, pelas instruções de Melo e Castro. E, subjacente ao confronto dos grupos de interesse, havia o antagonismo mais profundo entre uma sociedade que cada vez mais adquiria consciência de si e autoconfiança, em um ambiente econômico estimulador da auto-suficiência, em que punha ênfase, e a metrópole, interessada na conservação de mercados e no resguardo de um vital produtor de pedras preciosas, ouro e receitas.
Conjuração Mineira
Tendo falado até este ponto da conjuntura imperial, dos seus aspectos econômicos e ideológicos, e também da situação regional ou mineira, temos visto de um modo esquemático as crescentes tensões, quer no nível intra-imperial, quer no nível intracolonial, e também os seus aspectos sócio-econômicos, institucionais, e da mentalidade. Na última parte desta minha apresentação, vou abordar, também em termos esquemáticos, as particularidades da conjuração mineira dentro deste contexto conflituoso.
Os detalhes da proposta revolução mineira foram decididos no fim de 10 de dezembro de 1788: envolvidos na conspiração estiveram o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, comandante do regimento da cavalaria de Minas, os famosos Dragões, o dr. José Alvares Maciel, filho do capitão-mor de Vila Rica, o padre José da Silva de Oliveira Rolim, filho do principal administrador do Distrito Diamantino, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, Carlos Correia, vigário de São José, e o ex-ouvidor e coronel de milícias Alvarenga Peixoto23. Os seis reuniram-se para formalizar os planos de um levante armado contra a coroa portuguesa. Eram todos nascidos no Brasil e representavam diferentes zonas da capitania. E todos eram agentes da revolução em andamento.
Os conspiradores esperavam que a derrama fosse imposta em meados de fevereiro. Contando com a inquietação geral do povo, eles se propunham a instigar um motim sob cuja cobertura, e com a conivência dos Dragões, o Governador seria assassinado e se proclamaria uma república independente24. O alferes Silva Xavier deveria provocar a agitação em Vila Rica. Teria o auxílio de companheiros que chegariam antecipadamente à cidade em pequenos grupos, com as armas escondidas debaixo dos casacos. Quando os Dragões fossem convocados para enfrentar a multidão, Freire de Andrade deveria atrasar-se até que o alferes tivesse partido à caça dos Barbacenas em Cachoeira do Campo. Introduzindo-se na escolta do governador, ele prenderia e executaria o visconde de Barbacena, voltando então para Vila Rica25. O coronel Freire de Andrade, à frente dos Dragões, faria face à multidão perguntando-lhe o que pretendia. E o alferes Silva Xavier, mostrando a cabeça do Governador, bradaria que queriam a liberdade. A seguir seria proclamada a República e lida uma declaração de independência26.
A iniciativa crítica e o êxito imediato do movimento dependiam dos Dragões, e em particular do coronel Freire de Andrade e do alferes Silva Xavier. Oliveira Rolim assumiria a responsabilidade de tomar o Distrito Diamantino. Alvarenga Peixoto levaria a campanha a Rio Verde e asseguraria a rota de São Paulo. Carlos Correia asseguraria o apoio de São José, Bordo do Campo e Tamanduá27. Era prevista uma luta de três anos, e a missão de conseguir pólvora para todo este tempo, e provavelmente a de supervisionar a exploração do ferro, salitre e jazidas de sal locais foi confiada ao dr. Marcel28. Foi prevista muito pouca resistência no interior de Minas. A apropriação do quinto real deveria proporcionar fundos com que pagar as tropas e os gastos da campanha29.
Atrás dos ativistas estavam os homens mais respeitáveis, alguns não conhecidos por todos os responsáveis pela deflagração da revolta, Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e o cônego Luis Vieira. A missão deles era a de elaborar as leis e a constituição do novo Estado, articulando a justificativa ideológica do rompimento com Portugal. Eram homens bem-informados e tinham ótimas bibliotecas30. Mais rapidamente recebiam livros e informações do que chegavam às autoridades coloniais os despachos oficiais de Lisboa. A biblioteca do cônego Vieira contava com a Histoire de l'Amérique, de Robertson, a Encyclopédie e as obras de Bielfeld, Voltaire e Condillac31. Cláudio Manuel da Costa era tido por tradutor da Riqueza das Nações, de Adam Smith32. Entre os inconfidentes, circulava o Recueil de Loix Constituitives des États-Unis de 1'Amérique, publicado na Suíça em 1778, e que incluía os artigos da confederação e das constituições de Pensilvânia, Nova Jersey, Delaware, Maryland, Virgínia, Carolinas e Massachusetts, sendo particularmente importante a constituição do estado de Virginia, pois esta continha a declaração dos direitos de cidadãos da pena de Jefferson33. Continham, também, os comentários à constituição, de Raynal e Mably34. E é bom, neste contexto, lembrar as tão radicais declarações do abade Raynal: "Não há forma de governo com a prerrogativa de ser imutável", escreveu o abade Raynal na sua "Revolução da América de 1781". E dizia ainda: "Nenhuma autoridade política, quer tenha sido criada ontem ou há mil anos atrás, está livre de ser suprimida em dez anos ou amanhã. Nenhum poder, por mais respeitável e sagrado que seja, está autorizado a encarar o Estado como sua propriedade. E quem pensar de outro modo é um escravo" (ABADE RAYNAL, 1781, p.40). Cláudio Manuel da Costa e Luis Vieira eram brasileiros; Gonzaga, filho de brasileiro, crescera e fora educado na Bahia.
Por trás dos ativistas e dos ideólogos, havia um terceiro grupo de homens, mais discretos, também interessados na ruptura com Portugal. A pólvora tinha sido assegurada aos conspiradores por Domingos de Abreu Vieira35. O velho contratante português era intimamente vinculado a muitos dos principais inconfidentes.
Abreu Vieira estava em dívida com a Fazenda Real: devia muito, mais de dois milhões de réis, e é evidente que o velho negociante português envolveu-se na conspiração só por um motivo: porque ela proporcionava um meio de eliminar suas dívidas36. E não era o único: José Aires Gomes, outro conspirador, como fiador de João Rodrigues de Macedo em seu contrato de dízimos, tinha uma dívida de três milhões de réis com a Fazenda Real.
A impressão que se tem é que esta proposta de um Estado independente se apresentou, dentro de uma conjuntura crítica, como uma panacéia para os devedores da coroa na capitania. E associadas a Abreu Vieira e a Aires Gomes havia outras pessoas importantes, raramente mencionadas nas reuniões conspiratórias, porém, que tinham, apesar disto, um interesse vital no êxito do movimento. Entre estes contavam-se os dois grandes contratantes, João Rodrigues de Macedo e Joaquim Silvério dos Reis: ambos eram portugueses, porém, e o que é mais importante, os dois eram devedores da Fazenda Real, e, no caso de Rodrigues de Macedo, a dívida alcançava um total que era oito vezes superior à do seu ativo.
Entre os três níveis de apoio ao levante, ativistas, ideólogos e interessados financeiros, estes últimos não podem ser subestimados, mas, como sabemos, raramente entram na história oficial deste episódio. Todos estes homens, ou os que podem ser identificados com alguma segurança João Rodrigues de Macedo, Joaquim Silvério dos Reis, Domingos de Abreu Vieira, José Aires Gomes, Vicente Vieira da Mota, José Alvares Maciel e, provavelmente Luís Alves de Freitas Belo eram contratantes, fiadores de contratantes ou, como Vicente da Mota, e Maciel, homens cujo destino estava ligado ao dos contratantes. A maioria deles tinha nascido em Portugal. Juntos, em coalizão, os três grupos representavam uma estupenda seção da estrutura regional de poder. Na realidade, a plutocracia de Minas era tão alienada pela nova política de Lisboa que compreendia negociantes-capitalistas portugueses que, em outras circunstâncias, poderiam ter apoiado decisivamente o domínio metropolitano. Portugal perdera a confiança daqueles em quem mais confiava para a efetividade e continuidade de seu domínio sobre Minas Gerais. E, mais ainda, aqueles homens de fortuna e influência, cujo acordo tácito sempre fora o apoio do poder metropolitano em nível local, não se contentavam mais com a mera manipulação do sistema administrativo e tributário em seu próprio interesse: agora fazia-se claro para eles que isto era uma ilusão enquanto eles continuassem sujeitos a limitações e determinações de fora. Fazia-se necessário ir além e romper os vínculos com o império.
O programa da conjuntura refletia as compulsões imediatas e específicas que tinham alienado completamente os magnatas mineiros da coroa, forçando-os no rumo da revolução. Também refletia a presença entre eles de hábeis e preparados magistrados, advogados e padres obrigados à reavaliação das relações coloniais por outros motivos. E que se inspiravam no exemplo da América do Norte, nas constituições dos estados da União Americana e na obra do abade Raynal. Das informações fragmentárias que restavam, evidencia-se um perfil sumário de seus propósitos.
A capital da nova república deveria ser São João d'El Rei, decisão que espelhava as mudanças demográficas que se verificavam na capitania37. Serro do Frio seria liberada das restrições da legislação do distrito diamantífero, que seriam abolidas38. Manufaturas seriam implantadas, estimulada a exploração de depósitos de minério de ferro. Seria criada uma fábrica de pólvora39, seriam libertados os escravos e mulatos nascidos no País40, e isto merece ser notado, visto ser uma idéia extremamente radical para a época. Seria fundada uma universidade em Vila Rica41. Os padres das paróquias poderiam recolher dízimos com a condição de manterem professores, hospitais e casas de caridade42, propósito também interessante, pois sugere a idéia de uma separação entre Igreja e Estado. As mulheres que gerassem determinado número de filhos receberiam um prêmio pago pelo Estado para estimular o crescimento da população. Não haveria exército permanente; em vez dele, os cidadãos deveriam usar armas e servir, quando necessário, na milícia nacional43, idéia esta que é muito parecida às idéias de oposição aos exércitos permanentes dos norte-americanos da época. Seria instalado um parlamento em cada cidade, subordinado a um parlamento principal da capital44.
O desembargador Gonzaga governaria durante os primeiros três anos depois disto haveria eleições anuais45. Não seriam admitidas distinções ou restrições no vestuário e os ricos seriam forçados a usar produtos manufaturados localmente46. Todos os devedores da Fazenda Real seriam perdoados, ou seja, se utilizarmos termos modernos, seria proposto o repúdio às dívidas externas47.
A ênfase fortemente regionalista dos conspiradores inclinava-se, às vezes, para o nacionalismo econômico. Isto era mais explícito nos pronunciamentos de Tiradentes, embora ele não estivesse isolado em tal posição. Silva Xavier elogiava a beleza de Minas e apontava seus recursos naturais como os melhores do mundo, em palavras que lembravam as do abade Raynal. Livre e republicano como a América Inglesa, o Brasil poderia ser ainda maior, dizia ele, por ser melhor dotado pela natureza. Criando-se indústrias, não haveria necessidade de se importar mercadorias estrangeiras48. A Freire de Andrade ele afirmou que o Brasil era um país que tinha tudo o que precisava, não tendo necessidade de qualquer outro para substituir49.
O exemplo da revolução americana foi particularmente adequado porque os conspiradores viam notável semelhança entre a causa dos acontecimentos da América do Norte e a sua própria situação: "porque à América Inglesa nada a obrigou ao rompimento, senão os grandes tributos, que lhe taxaram" (ADIM, 1791, p.230), declarou um dos conspiradores. O grupo reuniu-se na casa de Freire de Andrade e concluiu que "o Abbade Reynold tinha sido um escritor de grandes vistas; porque prognosticou o levantamento da America Septentrional, e que a capitania de Minas Gerais com o lançamento do triouto da derrama estaria agora nas mesmas circunstâncias..." (ADIM, 1789, p.207).
De fato, a insistência de Melo e Castro na derrama, junto com seus atos contra os devedores particulares da coroa, em Minas, proporcionara aos magnatas da capitania um subterfúgio pré-fabricado para alcançarem seus próprios objetivos sob o disfarce de um levante popular. Entre os que tinham mais a ganhar do rompimento com Portugal, eram, evidentemente, os abastados plutócratas ameaçados de perder todo o seu patrimônio nos processos da Fazenda Real. A derrama era um tributo que recaía sobre toda a população, e, assim, podia ser usada por estes interesses os interesses daqueles que, durante tantos anos tinham sido, eles próprios, os arrecadadores e agentes da autoridade real (os opressores, portanto) dando-lhes uma fachada respeitável e a possibilidade de atrair o apoio popular para sua causa.
Ao insistir na rígida observância da lei da quota de ouro, Melo e Castro deu aos magnatas mineiros a mais adequada das armas para usarem contra Portugal. No início de 1789, uma formidável conspiração tinha sido organizada em Minas Gerais, apoiada por alguns dos mais ricos e mais importantes homens da capitania e contando com o apoio significativo da tropa regular aquartelada na região, incluindo o seu comandante-chefe. Se tudo ocorresse conforme os planos e a derrama fosse imposta em fevereiro de 1789, como se esperava, teria sido desencadeada uma ação que poderia, em última instância, desfechar um golpe arrasador no domínio português sobre o Brasil50.
A conjuração mineira fracassou; a derrama não foi imposta; a conspiração desarticulou-se; houve denúncias. Fracassou faz hoje exatamente duzentos anos com a prisão de Tiradentes no dia 10 de maio de 1789 no Rio de Janeiro. Mas a história do fracasso é outra história, história de devassas, interrogações, denúncias, torturas, assassínios, suicídios e do enforcamento de Tiradentes51. Mas estamos aqui hoje, creio eu, para comemorar a esperança e não a desilusão, para lembrar a revolução montada e não a revolução destruída. A minha intenção foi tentar ao menos explicar como a conspiração se originou, pois considero este episódio central para a explicação da época e de suma importância na história brasileira. Certamente, é incontestável que a alienação de membros importantes da elite mineira, em 1789, tinha se originado em condições muito especiais. As preocupações dos magnatas tinham sido determinadas pela íntima coerência estabelecida entre seus próprios interesses, de um lado, e a economia e as instituições regionais, de outro. As condições econômicas da capitania, na década de 1780, os tinham transformado em uma oligarquia auto-suficiente e localmente enraizada, composta de imigrantes portugueses e naturais da colônia. Os mandamentos do interesse próprio disseminados pelos tentáculos de um amplo relacionamento familiar tinham estabelecido padrões de conflito e de aliança que penetravam as hierarquias militares, judiciárias, burocráticas e institucionais. O processo era agravado pelo abrasileiramento de uma grande percentagem de oficiais do corpo de Dragões e pela nomeação de homens com interesses e ambições locais para a magistratura. Á situação, em si mesma perigosa para o governo metropolitano, agravava-se quando os naturais do Brasil percebiam que eram afastados das posições e possibilidades lucrativas durante o governo de Cunha de Meneses, e quando os que haviam arrematado os direitos e rendas da capitania tornavam-se devedores da Fazenda Real que lhes impunha, sem maior cerimônia, o pagamento imediato de seus enormes débitos atrasados, sob pena de expropriação.
Mas a cronologia e a ideologia da conjuntura mineira, além disto, tinha projetado o movimento em um contexto muito mais amplo. O êxito da revolução americana e o impacto das idéias de Raynal e de outros sobre o Brasil significavam que os magnatas mineiros haviam articulado sua oposição ao domínio português em termos desafiadores do sistema colonial, no sentido mais fundamental. Já tinham ocorrido, anteriormente, levantes muito mais custosos em vidas e em propriedades, mas nenhum revestido de motivação fundamentalmente anticolonial e tão conscientemente nacionalista. A revolta planejada não se materializara, mas isto não escondia o fato de que um importante segmento do grupo social em que o governo metropolitano devia confiar para exercer seu poder em nível local, em uma das mais importantes, populosas, ricas, e estrategicamente bem-situadas capitanias brasileiras, tinha tido o atrevimento de pensar que podia viver sem Portugal: amparados no exemplo dos norte-americanos e nas teorias políticas correntes, os colonos haviam questionado o que devia ser inquestionável. Por mais materiais que tivessem sido os seus motivos, os homens de Minas Gerais de 1789 tinham pensado em fazer uma república livre e independente e, devido a isto, os relacionamentos e crenças do passado tornavam-se totalmente transformados.
Referências Bibliográficas
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